Fantasia Histórica – Modo de Usar

Não é surpresa para ninguém o quanto gosto de Fantasia Histórica – é bem obvio ao ler a seleção de contos de AnaCrônicas (em que 6 contos podem ser assim classificados) ou no conto que integra a coletânea Espelhos Irreais.

E estou preparando para lançar mais um conto nesse subgênero. ‘Maria e a Fada’ – que assim como ‘Carta a monsenhor’, ‘Os olhos de Joana’ e ‘A morte do Temerário’ pertence a uma série intitulada Burgundia Phantástica – foi selecionado para a coletânea Imaginários III, organizada por Erick Santos para a editora Draco.

A série é composta por contos relativos aos duques da Borgonha, de Felipe de Rouvres a Carlos V. Nem sempre eles são protagonistas: em ‘Carta a monsenhor’, que saiu no primeiro volume de Paradigmas, Felipe de Rouvres é apenas citado por sua morte prematura e em ‘Os olhos de Joana’, Felipe o Bom é o antagonista de Joana d’Arc. Um ponto em comum entre ‘A morte do Temerário’ e ‘Maria e a Fada’ é o seu protagonista, um personagem real bastante influente na corte borgonhesa, o cronista e mordomo Olivier de La Marche. Se no conto da coletânea Espelhos Irreais, o servidor é um narrador, em ‘Maria e a fada’, ele testemunha os fatos:

Era o final do inverno de 1482 e La Marche estava chegando em Gand, uma das cidades mais rebeldes de todas as que compunham os domínios da Borgonha. Maximiliano fizera com que ele viajasse por todos os burgos dos Países Baixos e agora o encaminhara para a Flandres. Era uma tarefa árdua, já que os habitantes daquela região tinham, na visão de La Marche, uma grande tendência à rebeldia e a insubordinação.

E fazia muito frio.

Já via as torres da cidade ao longe e suspirou aliviado. Tinha quase sessenta anos, não era idade para andar a cavalo de um lado para o outro como se fosse mero arauto ou mensageiro. Decidiu que seria sua última missão para o arquiduque. Retirar-se-ia da corte e terminaria suas memórias.

De repente, alguma coisa brilhou no seu campo de visão. Perguntou ao jovem escudeiro que o acompanhava.

– Viu aquilo?

Não esperou resposta e encaminhou seu cavalo naquela direção. Novamente, viu um brilho de relance, como se algo estivesse fugindo dele. Seguiu por alguns minutos até chegar a um lugar sem saída. Só conseguiu ver a ponta de uma cauda dourada sumindo para dentro da terra. No lugar onde passara, algo brilhava no chão. Sentindo as dores dessa sua pequena aventura, desceu do cavalo com cuidado. Aproximou-se e confirmou suas suspeitas. Era uma escama dourada, muito semelhante a que entregara à Maria.

Um arrepio percorreu seu corpo. Lembrou-se das velhas histórias contadas na região de Lusignan sobre a fada Melusina aparecer sempre antes de algo terrível. Montou novamente e retomou a trilha, desta vez mais rápido. Ansiava em chegar logo a Gand.

Meu envolvimento com a Fantasia Histórica começou na época de faculdade. Sempre me fascinava, ao ler sobre eventos e personagens, a possibilidade de uma intervenção fantástica. Como se fosse uma História Alternativa – só que o elemento do ‘e se…’ é do plano do sobrenatural e do implausível. Desde que comecei a publicar textos com essa temática – contos ou trechos de Finisterra – tenho recebido comentários e perguntas sobre como conseguir escrever assim, na fronteira do Romance Histórico com a Fantasia.

Bem, vou tentar resumir esse processo em alguns passos:

1- Escolha bem o seu plot para evitar anacronismos. É muito comum, por exemplo, ao querer trabalhar com bruxaria escolher falar da Inquisição na Idade Média. A Inquisição Medieval é muito mais preocupada com a caça aos hereges como os albigenses do que com bruxas e feiticeiras.

2- Após definir o periodo e o local em que sua história vai se passar, é hora de aprofundar a pesquisa. Você pode pensar que jogar no google e ler a wikipedia por alto pode ser suficiente, porém o diabo mora nos detalhes e em ficção histórica os detalhes são os que dão a atmosfera. Caça às bruxas, por exemplo, é muito mais forte nos países protestantes do que nos católicos.

3- Essa questão dos detalhes é importantíssima ao se escrever ficção histórica, sendo fantasia ou não. Mais do que veracidade, o ponto é a verossimilhança – o seu leitor tem que identificar o período histórico sendo retratado.

4- Equilibre as informações que você está compartilhando, sabe como é chato ler ‘Senhor dos Aneis’ quando o Tolkien começa a despejar nomes de reis, batalhas e etc.? Não é por serem reis, batalhas e etc. reais que fica legal. Se duvidar é até mais chato, fica com cara de livro paradidático oficial.

5- Linguagem é tudo. Seu camponês do século XVII não pode falar igual a um caminhoneiro do XXI. Nessas horas, a pesquisa é fundamental e mais complicada. Leia livros escritos na época em que se passa a sua história e preste atenção aos regionalismos. Se sua história se passa em um país em que se fale outra língua e não o português, tente inserir expressões de época na língua local. Mas sem fazer como italianos de novela da Globo. Seu leitor precisa entender o que está sendo discutido.

6- Cuidado com o pedantismo. Não é por estar escrevendo sobre o século XVI que você tem que escrever como se estivesse no século XVI – isso torna a leitura cansativa, dá um tom fake que desagrada ao leitor e fica chato pra caramba. Tente equilibrar a narração usando um português mais correto e sem contrações e gírias.

7- Não tenha medo de criar em cima da História. Toda a História, mesmo a que vem nos livros de escola, é um discurso, produzido em determinado contexto. O ponto é que você está assumindo a sua criação como obra ficcional – os historiadores nunca fazem isso.

8- Particularmente, eu gosto de personagens mais escondidos. São menos batidos e geralmente tem histórias fascinantes.

Basicamente, estas são as minhas dicas. Em Finisterra, eu abusei um pouco mais da liberdade criativa do que nos contos, principalmente em ‘Maria e a fada’. Porém, as aventuras de Pero Vaz de Caminha e Rui de Pina ficam para outro post.

39 comentários em “Fantasia Histórica – Modo de Usar”

  1. Parabéns pela publicação! 😀

    E, sobre o texto, MUITO legal e MUITO instrutivo. A fantasia histórica é um gênero instigante, só que não é para qualquer um escrever. Se toda ficção precisa de estudo para ser escrita, a fantasia histórica exige o dobro, o triplo. As dicas são muito válidas e escritos do gênero são benvindos, mas ESTUDEM, ESTUDEM, ESTUDEM, srs. autores!

    1. Exato, Carol.

      É como escrever Ficção Científica. Não dá pra sair inventando leis físicas ou mudando as condições químicas sem um estudo muito bom antes. Para brincar com a História, para modificar o que aconteceu ou dar um novo sentido, é preciso saber bem os fatos e personagens.

  2. Ana Cris, eu realmente te admiro por entrar nesse gênero. Tudo parece fácil quando está pronto, mas pra achar esse equilíbrio entre o fato histórico correto e o entretenimento, sem cair no paradidático chato, é preciso ter um tipo muito particular de talento.

    Gosto dos seus contos históricos. ^^

    1. Dri,

      Eu nem acho que o ponto é achar o ‘historicamente correto’, até porque isso dá panos para manga. Muito mais importante é dar ao leitor a sensação de estar na época retratada. Um livro que consegue fazer isso muito bem é o do Max, ‘O centésimo em Roma’. Depois de ler, você nem vai achar os meus contos históricos tão bons.

  3. Mais um belo texto Aninha, parabéns.

    Vale, inclusive, para quem quiser se aventurar por História Alternativa; o que já li de “furos” em algumas histórias…. dava pra chorar….. e não falo de autores amadores começando a escrever (estes o Tio Ivo até dá um desconto), mas gente que já está tarimbada no ramo:
    “Disaster at D-Day”, de Peter Tsouras, editor e escritor com vários livros publicados: mostra uma Realidade Alternativa onde os Aliados tiveram muito mais trabalho no desembarque (com o tempo pior), com Rommel podendo melhorar as defesas na França, etc….
    O autor só “esqueceu” que os Russos também vinham com tudo, feito Ursos desembestados.

    1. Ivo,

      Eu acho a escrita da História Alternativa um oficio muito complexo. Eu ainda não me atrevi a isso, não.

      Além do principio da verossimilhança, tem que se pensar na plausibilidade do ponto de divergência e verificar todo o panorama para ter certeza de que não há ‘furos’.

      No caso do livro do Tsouras, ele falhou em ver o quadro mais amplo…

      1. Tem um livro de história alternativa muito interessante do Robert H. Heinlein: “Job: A Comedy of Justice”. O personagem principal paasa de uma realidade alternativa para outra do início ao fim do livro, eu gostaria de achar esse livro de novo em algum lugar…

      2. Sylvie

        Pelo que você descreveu, me parece ser mais um livro sobre realidades alternativas do que de H.A. mesmo. Mas fiquei curiosa, só que não encontrei mais resenhas.

        De qualquer forma, tem na Amazon por preços razoáveis:

  4. Como a discussão na comunidade EdF parou, repito aqui as minhas considerações:

    Os itens 5 e 6 não são em parte contraditórios? No 5 sugere pesquisar a linguagem da época e no 6, recomenda não usá-la.

    Acho que o importante é menos a linguagem do que a mentalidade. Dá para escrever tanto com uma linguagem coloquial quase moderna (evitando anacronismos óbvios, como expressões do tipo “caiu a ficha”, ou “mais por fora que surdo em bingo/umbigo de vedete” etc.), como com uma linguagem que soa quase como a dos textos da época (como faz o Lodi-Ribeiro em “Xochiquetzal”). Depende do tom da história. O importante é que os personagens realmente pensem como quem vive em sua época,

    Quem quer escrever com uma linguagem mais moderna não deve esquecer que o conteúdo, o mundo mental dos personagens, deve ser compatível com o cenário. Quem quer escrever mais próximo da linguagem da época deve manter a inteligibilidade para seu público-alvo.

    Isso geralmente significa esticar as regras do português moderno criando dentro dele um estilo que lembra o português antigo, não realmente escrever português antigo – é sempre uma “tradução”, livre ou fiel (não é porque se vai escrever sobre o Império Romano, que é preciso escrever em latim, grego ou aramaico).

    1. Antonio

      O ponto é o equilibrio.

      O Eric mesmo comentou no orkut isso:

      “Acho que o que ela quis dizer é que em um diálogo o camponês não deve falar “coé, mano. Tá dentro?” E que, por outro lado, o autor não deve dar uma de “eu sou um nobre reencarnado do século lá vai vapor” e escrever o texto inteiro com essa cara.”

      O caso é que tem gente que coloca camponeses europeus falando como manos da periferia – ou chamando seu antagonista de ‘anta’ (pun intended) – e outros acham que para escrever sobre o século XV tem que psicografar o Rui de Pina ou o Fernão Lopes. Emular o estilo de epoca não quer dizer que se escreva exatamente nele.

      O ‘Xochiquetzal’ é um excelente exemplo desse equilibrio. Não usa o português quinhentista, mas os dialogos são adequados à mentalidade de época, com expressões próprias do cenário, e a narrativa lembra de longe as crônicas dos descobrimentos, sem no entanto escrever como eles.

  5. O #4 é particularmente útil, pela sutileza da armadilha, eu acho: o name-dropping pode deixar situações e conversas artificiais. A mini da Globo, Anos Dourados, era cheio de diálogos referentes a situações de época: “Vamos ao cine de tal, ver o filme x, com z e y atuando?” Parecia que os atores iam mandar uma piscadinha em seguida, pra quem estivesse na faixa etária da referência.

    Qto ao livro do Tsouras (jura que o nome do cara é esse?), é a tal coisa: pontos de divergência sempre pedem por causas, mas também insistem em empurrar consequências, como parte da credibilidade. Será que ele simplesmente resolveu não puxar mais do “cobertor curto” do que ele se propôs?

    1. Exatamente.

      Essa cara de piada interna aliena o leitor que não conhece o periodo histórico sendo tratado – e aí a leitura fica chata.

      Ainda não li o livro pra dizer mais sobre. Se o tio Ivo emprestar, eu leio.

  6. Uia! Curti muito, muito, mesmo… Sou muito entusiasta de fantasia histórica por dois motivos: sou professor de história e tenho uma “veia artística” muito forte, me dividindo em ler muito, entrar numas de desenhista e escrever um pouquinho. Seu texto e a proposta estão de parabéns, enfim.

    (Vou até salvar o link; de repente, acho uso em sala de aula, futuramente.)

    …Queria muito fazer algo neste sentido, também. Mas, por ora… É complicado. No mais, vou acompanhando autores mais conceituados, como aqui. =)
    E esse tipo de iniciativa ajuda pacas no planejamento e discussões nas aulas, cês nem imaginam.
    Parabéns!

    1. Oi, Emanuel

      Bom que um colega de ofícios tenha gostado do texto. Espero que você tenha a oportunidade de ler o livro e dar sua opinião sobre o conto. Se quiser, leia o meu outro conto na linha, ‘A morte do Temerário

      De qualquer forma, deixa eu te perguntar: o ponto 7 te incomodou? Pq um ex-professor de História ficou escandalizado com a minha informação de que a História é um discurso…

      1. É, ainda quero adquirir o livro, sim!
        (Mas tenho que dar uma economizada; comprei meia coleção dos Guardiões de Ga’Hoole. =P)

        Não me incomodou, o ponto 7, e nem discordo. Na real, esse professor não deve ter lido obras como Teatro das Sombras, do José Murilo de Carvalho, entre outras obras… Enfim, além de, como você afirma, a história ser uma produção de um contexto, ela é cheia de (re)interpretações. Historiografia não existiria, se não fosse assim, e os livros didáticos ainda diriam que a escravidão indígena foi bem aceita e importante para estes…

        Fora isso, existem MUITOS autores e professores universitários – ou não, em alguns casos – que se aproveitam de ranços ou considerações estritamente pessoais para “definir” a História de acordo com suas percepções. Felizmente, os melhores NÃO são assim…

        E, nessas, você já leu “Anno Dracula”, de Kim Newmann, ou “Um Estudo em Esmeralda”, do Neil Gaiman?

      2. Pois é, Emanuel

        A visão da História como verdade já está um bocado ultrapassada, mas ainda ecoa em pessoas com formação mais antiga. Nos últimos 20 anos, tem se repensado muito a questão da Ciência – e não só da História – como discurso e contexto, no caminho da teoria pós-moderna e tal. Só que tem gente que se fecha no campo e só lê o que interessa. Em termos de História, são poucas as pessoas que se interessam em ler sobre Teoria.

        O ‘Anno Dracula’ tá na fila. O ‘Estudo em esmeralda’ é maravilhoso, um dos melhores exemplos de Ficção Alternativa que eu já li!:) Adoro!

    1. Tem o conto em outro lugar? Aqui apareceu todo truncado, com parágrafos subindo uns nos outros. Só consegui ler a 1a página.

    1. Kuja

      A moderação de comentários no blog é automática: sempre que um IP novo comenta, o wordpress filtra. O seu primeiro comentário foi para a caixa de spam, por causa do link no corpo do texto – como não tenho hábito de olhar lá, só o vi agora.

  7. Ótimas dicas, dá para seguir muitas delas inclusive se estiver escrevendo Ficção Científica mais futurística, ou até mesmo FC que retorna ao passado. Gostei! Obrigado por compartilhar a sua experiência… Sentimos falta da Callista na Bishop…

    1. Oi, Victor!

      Sim, tem certas coisas que valem pra qualquer experiência de escrita, né? A parte da pesquisa e dos detalhes, principalmente, também são fundamentais na FC.

      Também sinto muita falta de jogar no PBEM, mas realmente não dá tempo nem pra respirar!

  8. Li “A Morte do Temerário” na Samizdat e gostei. Confesso que não escrevo textos históricos com frequência justamente pelo medo do anacronismo, que dói feito farpa no olho. O texto da Ana aí em cima diz tudo: equlíbrio e pesquisa, sempre. E escolher o recorte histórico direitinho, ou corre-se o risco de, como eu, passar semanas sem detalhes sobre a vida de Eugenio Torralba…

    1. Oi, Cirilo

      Que bom que você gostou do conto.

      Pois é, anacronismo doi mesmo, incomoda, principalmente quando é gratuito (porque até mesmo um anacronismo pode ser aceito dentro do contexto)

      Mas na escolha de recorte, eu geralmente dou uma ‘trapaceada’: só escolho escrever sobre temas que eu já tenha uma boa base…

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