Retrospectiva – Livros de 2008 – VI

Então, crianças, vocês estão sabendo que se Poe estivesse vivo faria 200 anos hoje? Infelizmente, o homem do Corvo, um dos melhores tradutores das angústias humanas só viveu por 40 deles.

Mas sua influência estendeu nas décadas a frente e até hoje pode ser sentida. Poe é um dos influenciadores do New Weird, de Sherlock Holmes e de praticamente todo o terror psicológico.

É muito estranho eu dizer que ele aparece como o conselheiro espiritual de uma jovenzinha perdida em um livro infanto-juvenil?

Se não é para vocês, para mim foi. Um bocado, aliás.

O livro em questão é Farei o meu destino (título muito ruim) do escritor carioca Miguel Carqueija. E é uma obra muito aquém da capacidade do seu autor, figurinha carimbada da Segunda Geração do fandom brasileiro.

[Sabe, tem spoilers ali embaixo. Nada de muito chocante, porque lá pela página 25 dá pra sacar a do livro, mas anyway…]

 

 

 

 

[Foram avisados…]

Cabelo-de-cenoura, também conhecida como Diana, é uma órfã de boníssimo coração, guiada por conselheiros espirituais que ela chama de Mestres Oníricos. Criada em um orfanato católico cheio de freiras malvadas – que o autor explica que não seguem a verdadeira religiã cristã, consegue fugir com a ajuda dos tais mestres – e siiiiiiiim, Poe é um deles. E ela descobre que tem uma missão especial.

Diana não está sozinha, tem a ajuda de suas cinco amiguinhas órfas que fugiram com ela e de seu novo amor-para-toda-a-vida, Sandy. Vilões malvados e tristes perseguem as crianças.

Nada muito fora do contexto infanto-juvenil, certo?

Ok, logo no começo do livro há uma cena de quase estupro que termina com a morte do estuprador. As meninas recebem cantadas grosseiras de caminhoneiros.

Ah, mas os tempos mudaram… o autor quis atingir o público mais juvenil e menos infanto.

Aí, eu digo que as menininhas chegam na casa do tal Sandy e dizem precisar de amor e carinho…

Entenderam?

Esse é um dos problemas do livro: ele não tem um tom, não é uma narrativa coerente. Atira para todos os lados e acaba não atingindo nenhum – talvez por desconhecimento do autor sobre o seu público leitor.

Por exemplo, a completamente desvairada referência a Sailor Moon. Eu sou ‘moonie’ de carteirinha, adoro essa série shojo e não vejo a hora de sair o mangá por aqui (vai sonhando, Ana Cristina). O final do livro tangencia perigosamente o plágio do primeiro ano do anime, chega a ser um bocado constrangedor ver que as meninas ganham saiotes coloridos…

Até mesmo a narrativa de Carqueija, geralmente segura e adjetiva – bem lovecraftiana – se perde. E a falta de um editor firme se faz perceber quando o autor abre dialogos como se costuma fazer em um roteiro, ou seja:

PERSONAGEM – Fala

Alternadamente com a narrativa mais usual – e mais correta em se tratando da prosa – de se NARRAR quem está falando.

O livro é curto, corrido e atropelado demais, delineando mal o cenário – além de um proselitismo católico que pode incomodar pessoas com menos paciência para isso.

Um ponto que foi levantado por pessoas que não leram a obra é a possibilidade do livro ser ‘New Weird’.

NÃO, NÃO É!

As pessoas antes de sairam perguntando ‘Isso é açucar? Isso é feijão? Isso é polvo com brócolis? Isso é café com leite?’ deveriam pesquisar um pouquinho – e ler com cuidado.

New Weird é um movimento, logo para a obra ser NW das duas, uma: ou o AUTOR se identifica como ou os autores do MOVIMENTO a adotam. Nada disso aconteceu com o livro do Carqueija, que até onde eu sei jamais leu um livro desse subgênero.

Nas palavras do Pai do NW, Jeff Vandermeer, citado pelo querido Jacques Barcia:

“O New Weird é um tipo de ficção urbana e de segundo-mundo que subverte as ideias romantizadas sobre locais encontrados em fantasia tradicional, principalmente por escolher modelos realistas e complexos como o ponto de partida para a criação de cenários que combinem elementos tanto de FC quanto fantasia. New Weird tem uma qualidade visceral que geralmente usa elementos do surreal ou horror transgressivo para seu tom, estilo e efeitos (…). Ficções New Weird são conscientes do mundo moderno, mesmo que disfarçadamente, mas não são sempre diretamente políticas. (…)”

O livro em questão é tudo, menos visceral. O elemento urbano não tem importância. O mobiliário da FC e arquitetura da Fantasia não se mesclam como nos bons livros de New Weird (me cobrem a resenha de Perdido Street Station e The Scar). O sentimento do surreal vem mais da incoerência da obra do que por uma construção estilistica. Anyway, a melhor forma de conhecer ainda é ler as obras, principalmente a coletânea New Weird. Não sabe outra língua? Melhor rever isso, colega.

Voltando ao livro, acho que Poe merecia melhor homenagem e que Miguel Carqueija, um militante da FC brasileira, poderia tê-la feito muito melhor. Todo o seu histórico leva a pensar isso. Pena que derrapou feio nessa tentativa.