O que ando lendo – ‘Le chevalier deliberé (the Resolute Knight)’ de Olivier de La Marche

Ano Novo, vida nova… e tempo de reencontrar velhos amigos.

meulivro

Aproveitei o começo das férias para ler uma aquisição recente, que pulou muitas posições na pilha de livros a ler (PLL) por vários motivos. Primeiro, porque Olivier de La Marche, autor do original, é personagem recorrente nos contos passados no Universo Ficcional  (UF) do Grande Continente (quem me acompanha há mais tempo conhece o UF pelo título de um de seus livros, Finisterra). E,principalmente, por ser um livro que li no mestrado por alto, sem realmente poder apreciá-lo, mais como uma leitura complementar às gigantescas Memórias do La Marche. (E li em francês quinhentista, cheio de ‘s’ e ‘e’ que não existem mais, o que quase me reprovou na Aliança Francesa).

Ah, sim. Enquanto na Amazon, o bichinho sairia a quase U$ 40,00, no Book Depository veio por menos de U$ 8,00 – e sem frete.

Quando comecei a ler o estudo crítico que antecede o poema, nessa edição maravilhosa do Centro de Estudos Medievais e Renascentistas do Arizona, me deu aquela inveja branca dos recursos que os pesquisadores tiveram. Para essa tradução, eles conseguiram comparar mais de 25 edições do poema – manuscritos e incunábulos  além de edições facsimiladas dos séculos XIX e XX – in situ e mais três em cópias digitais. Fizeram valer a pena o investimento, já que compararam todas para chegar à uma versão do texto que seria a mais próxima do original. Sim, pois uma das dificuldades dos estudos medievais é justamente encontrar a versão mais ‘correta’ ou ‘primitiva’, que vai se alterando em suas sucessivas cópias e/ou reimpressões.  Esse estudo comparativo permite inclusive reconstruir a história dos volumes, traçando relações entre eles por meio das semelhanças e diferenças nas grafias e na disposição do conteúdo, pois há manuscritos que invertem a ordem das estrofes, outros incompletos e alguns ilegíveis.

O estudo crítico, aliás, preocupa-se muito mais com essas questões de forma e da materialidade do texto (inclusive detalhando as grafias e arcaísmos do manuscrito-base da tradução), deixando um pouco de lado o conteúdo e o contexto do poema. Pouco se fala sobre La Marche ou as circunstâncias em que viveu e escreveu. Uma das explicações para isso seria o pouco espaço dado ao ensaio, a outra seria justamente que o público-alvo dessa obra já deteria esse conhecimento. Só que, na minha opinião, poderiam ter cortado algumas páginas na listagem e comparação de manuscritos para aprofundar esses aspectos, o que ampliaria o alcance desse estudo.

(Nesse post, também não vou ter tempo nem espaço para isso, mas vocês sempre podem dar uma lida na minha dissertação de mestrado para saber um pouco mais sobre o assunto. Surgindo o interesse, faço um pequeno texto sobre o La Marche)

Em resumo, Oliver de La Marche foi servidor da casa da Borgonha desde a década de 1430 até 1502, ano de sua morte. Um cortesão completo, foi embaixador, cronista, mordomo, preceptor e guerreiro, leal aos seus senhores mesmo quando Carlos, o Temerário, morreu em 1477, extinguindo a linhagem pelo lado masculino. La Marche permaneceu a serviço da herdeira, Maria, e de seu marido e filhos após a morte dela em 1482. Assim, tornou-se preceptor de Felipe, o Belo, futuro rei-consorte da Espanha já unida e pai de Carlos V, Imperador.

O poema foi escrito em 1483, seis anos depois da morte de Carlos e um depois do falecimento de Maria. O impacto desses acidentes – Carlos morreu em batalha, Maria por causa de uma queda de cavalo – tornou-se a longa reflexão sobre a morte e a igualdade de todos os homens perante ela que é  ‘O cavaleiro determinado’.

Na edição crítica, os tradutores/editores lembraram desses acontecimentos, mas os deixaram de lado como fatores determinantes, ao dizer que essas mortes pouco influenciaram a escrita do poema, que se deveria muito mais a um espírito de época do que a uma necessidade pessoal do escritor. Porém, ao acompanhar a carreira de La Marche, pode-se perceber que é nesse ano de 1483 que ele se voltou à reflexão sobre o passado e sobre as obras e glórias de seus senhores, já que na mesma época ele retomou a escrita de suas Memórias – um verdadeiro testemunho da pujança da Borgonha no período entre 1430-1477. Não seria demais afirmar que essa reflexão sobre a morte se enquadraria sim no contexto da morbidez medieval, sem deixar de lado as profundas preocupações políticas e corteses de La Marche.

Cabe dizer que os editores não reproduziram uma informação errônea e que se encontra bastante difundida, a de que o poema seria totalmente voltado a Carlos e sua morte em batalha. Esse senso comum vem da edição de 1493 que se encontra digitalizada pela Biblioteca Nacional da França e que foi disponibilizada pelo Projeto Gutemberg, que começa assim:

del

“Cy commence le chevalier deliberé compregnant la mort du duc de borgoigne qui trespassa devant nansy en lorraine.”

(“Aqui começa O cavaleiro determinado, contendo a morte do duque da Borgonha que aconteceu em Nancy, na Lorena”)

Essa citação é apócrifa e foi reproduzida nas edições subsequentes. Uma explicação – e aqui entra a escritora, imaginando coisas – seria o fascínio que a figura do Temerário ainda causava no final do século XV e começo do XVI, sendo essa frase um chamariz para o público.

O poema em si aparece numa transcrição do francês quinhentista em uma folha, com a tradução para o inglês ao lado, tornado a comparação mais fácil. Ressalto que os tradutores optaram por trazer o sentido, mais do que a rima ou a métrica, pois consideraram que esse seria um ganho maior para os leitores acadêmicos de hoje. E não discordo deles, acho que faz mais sentido concentrar esforços nessa direção do que quebrando a cabeça para conseguir encaixar rimas e sílabas.

A história acompanha o Cavaleiro Determinado, que parte em uma jornada impulsionado pelo Pensamento – aqui, uma personagem feminina – aos jardins de Atropos (a Morte), para descobrir quem detém poder sobre ele, Lorde Acidente, o Terrível ou Debilidade, o Horrível. No caminho, percorre uma série de obstáculos que correspondem aos excessos e maus comportamentos, encontra abrigo com o Eremita Compreensão que lhe dá a lança chamada Autoridade com a qual batalha contra a Idade Avançada. Depois, encontra a Memória, com quem caminha pelo cemitério das pessoas abatidas pelas duas figuras.

Aqui, La Marche aproveita e junto do seu apanhado de figuras bíblicas e remotas, coloca personagens de tempos mais recentes e ligados a corte borgonhesa, como o duque de Coimbra, cunhado do Temerário, e o cavaleiro Jacques de Lalaing, ambos mortos por Lorde Acidente. (Aliás, Lalaing é a personificação da queda da cavalaria no século XV em razão do surgimento das armas de longo alcance, principalmente as armas de fogo, já que foi morto por um tiro de canhão.) Mas no fim do passeio, surge a reflexão que ali, todos são igualmente frágeis: duques, reis, imperadores, princesas, condessas, papas, burgueses, camponesas. Depois, a Memória o leva até a frente dos jardins da Morte, onde um torneio está para acontecer.

A quarta parte do livro começa com uma batalha entre Sir Debilidade e Felipe, o Bom (o primeiro duque da Borgonha a quem La Marche serviu, pai do Temerário).  A justa é contada na maneira típica das crônicas de época, com a descrição exaustiva dos estandartes e dos golpes, nesse caso entremeada com algumas reflexões sobre as armas, vestimentas e símbolos utilizados, que sempre remetem às qualidades ou aos defeitos dos combatentes, situação que se repetirá em outras cenas de batalha.

Mas a batalha tem destino certo, já que Felipe morreu de velhice e o texto avança para mostrar o embate entre Carlos, o Temerário, e Lorde Acidente. E é nessa parte que é possível ver que o narrador-personagem é o próprio La Marche, já que ao ver Carlos caído ao chão no fim do combate, ele o chama de ‘mon maistre’/’meu senhor’ e começa uma reflexão sobre como o Destino pode destruir até mesmo aquele que tem tudo. Há no meio dessa narrativa, uma ponta de recriminação aos atos impensados do duque, mas muito mais sutil do que se poderia esperar, em comparação com o resto da alegoria.

A última batalha é de Lorde Acidente com Maria, que chega precedida de um grande honrado cortejo – e sua presença, bela e valorosa, intimida Lorde Acidente, pois a princesa vem em busca de vingança contra a angustia que o torneio causou. Porém, o servo da Morte é instigado por Loucura e  a golpeia, ferindo-a e causando uma infecção mortal.

O narrador se angustia, pois com essa morte a Borgonha e sua glória chegam ao fim. Desesperado, como tem não tem mais nada a perder depois da morte de seus três senhores, o cavaleiro se dispõe a lutar com os servidores da Morte. Mas sua hora ainda não chegou e um emissário o dispensa, para alegria da Memória, que o leva de volta à sua casa pela estrada da Consolação. No caminho, relata outras mortes valorosas e prematuras, até que novamente encontram o eremita Compreensão que explica ao cavaleiro como se portar de forma adequada em um campo de batalha, mesmo sabendo estar seguido de perto pelos dois servidores da Morte.

No final, o eremita some, deixando o narrador sozinho e perdido, até que ele decide escrever suas aventuras para que sirvam de exemplo e reflexão. E encerra dizendo que esse pequeno livro foi escrito “por ele que tanto sofreu, La Marche”.

Ok, o escrito acima foi um apenas resumo da trama frágil que serve de fundo para a alegoria, mas eu acho que está bem claro que La Marche não está só se reportando a um zeitgeist ao escrever esse tratado poético sobre a Morte. Há preocupações bem mais materiais e políticas, além de uma preocupação profunda com o futuro e o legado de seus senhores. Extrapolando os limites acadêmicos e indo pra fronteira do achismo, poderia dizer até que é uma forma de La Marche tentar se livrar da tristeza com a morte dos duques, mas principalmente com o falecimento precoce e infeliz de Maria, de quem ele foi um conselheiro muito próximo mesmo antes da morte do pai.

A edição ainda conta com algumas reproduções de iluminuras, uma vasta bibliografia, uma transcrição das instruções deixadas para os iluminadores e um pequeno glossário sobre os nomes citados no poema, alguns bem obscuros para nós, pessoas do século XXI.