[Conto] Diário de Noé

Diário de Noé

Ana Cristina Rodrigues

Dia 01

A melhor parte do dia de hoje, sinceramente, foi a cara dos meus vizinhos quando a tempestade chegou. A vontade era de gritar “eu avisei, seus cretinos”, mas eu estava ocupado demais tentando fazer as girafas curvarem os pescoços para entrar na arca.

A comida está toda separada, mas ainda espero um esclarecimento divino de como vou fazer pros leões não comerem as zebras, e as corujas estão olhando com interesse demais pras galinhas. Acho que as gralhas estão incentivando.

Dia 09

A minha esposa passou uma semana reclamando o tempo todo. A prova disso é que agora todos os pássaros que imitam a voz humana – papagaios, maritacas, gralhas – estão reclamando das mesmas coisas que ela. Se continuar assim, um dos gatos vai parar por acidente na gaiola.

Por outro lado, os pássaros canoros aprenderam a cantar no mesmo tom.

Dia 12

Tive que amordaçar o casal de pica-paus. Não contentes em matar pelo menos umas cinco espécies de escaravelhos antes que eu percebesse, estavam bastante determinados a esburacar o barco. E como precisavam fazer isso sem eu perceber, escolheram o fundo da arca.

As gralha os acobertaram. Quando fui resolver e reforçar onde eles bateram, as gralhas e as corujas ficaram me observando. Acho que estão querendo preparar um motim.

Dia 13

Minha esposa e as gralhas estavam conversando no convés, apesar da chuva, e pararam quando eu cheguei perto. Depois disso, senti que todas as aves de rapina me olhavam com ódio. Menos os urubus, esses me olhavam com expectativa, o que achei ainda pior.

Das 6.500 espécies que embarcaram, já perdemos 150. A maioria de insetos.

Mas começo a me perguntar se foi uma boa ideia mesmo isso.

Dia 20

Não aguento mais a chuva. Não aguento mais o cinismo das gralhas. O papagaio veio conversar comigo em particular se, em vez de ser eu a tomar todas as decisões, não poderíamos fazer um conselho democrático.

Quando apontei que a imensa maioria dos animais não fala a minha língua, e que sequer entendem um ao outro, ele se ofereceu como intérprete.

Papagaio fica bom na brasa?

Dia 24 (acho)

Apaguei por uns três dias seguidos, e não faço ideia do que causou isso.

Mas tenho certeza que as gralhas estão envolvidas. Vi-as hoje empoleiradas em um dos rinocerontes – acho que é o macho – conversando animadamente com vários animais de grande porte. 

As hienas foram as primeiras a me ver depois que acordei e começaram a rir da minha cara.

O papagaio jura que foi por uma piada que a lontra contou.

Não confio neles. Em nenhum deles.

Dia 30

Jeová deveria ter feito uma lista dos animais que mereciam ser salvos e tirado as gralhas da lista. Afinal, se quis destruir a humanidade por estar corrupta e ambiciosa, essa canalha empenada deveria ter recebido o mesmo destino! Hoje, recebi o Comitê dos Animais Unidos, representados pelas gralhas, lógico. Exigem participar das decisões mais importantes sobre o destino da arca e também serem convocados para qualquer reunião com o Supremo.

Além disso, queriam estabelecer um prazo máximo para ficarem dentro da arca. Isso estamos cercados de água por todos os lados, sem sinal de terra seca, E A CHUVA NÃO PAROU NOS ÚLTIMOS 30 DIAS.

No fim da reunião, estabelecemos que quando completar 40 dias, um representante das gralhas irá fazer inspeções diárias para ver se a água está baixando. De acordo com o relatório da gralha, iríamos decidir esvaziar a barca ou não.

Quando tentei comentar que Jeová  mandaria um sinal divino, fui interrompido dizendo que preferiam comprovações científicas.

Dia 140

CANSEI DESSA PORRA!

As gralhas me prenderam no porão do navio junto com as preguiças, os tamanduás e uns bichos com bico de pato que eu tenho certeza que não vi embarcar. Me deixaram aqui por cem dias! Minha família ficou do lado delas!

Estão dizendo para todos que a água ainda não baixou, mas uma das pombas conseguiu fugir, encontrou um lugar seco com árvores e voltou para me libertar. ISSO ACABA AGORA, vou encalhar esse barco no primeiro monte seco que encontrar.

Dia 140, suplemento

Jeová ficou meio chateado, mas entendeu o motivo de, ao selarmos nossa aliança, eu ter sacrificado duas gralhas em vez de um carneiro.

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