A corte dos reis carmesins

Se fizéssemos uma enquete sobre qual o planeta do nosso sistema solar preferido dos escritores para ambientar suas aventuras, posso apostar que Marte ganharia. Parece que sonhamos com ele desde o começo da humanidade, mesmo sem nunca termos postos os pés lá – pelo menos, não nesta nossa realidade.

Hoje, mais uma tentativa de se aproximar do solo marciano se concretizou com a chegada da Perseverance ao nosso vizinho. E inevitavelmente a doida dos livros aqui lembrou de várias obras passadas em Marte, desde o pioneiro John Carter de Marte, de Edgar Rice Burroughs ao flowerpower de Um estranho em uma terra estranha, do Robert Heinlein – passando pelo poutporri de homenagens feito por G.R.R. Martin, Gardner Dozois e grande elenco em Crônicas de Marte, revisitando a clássica obra de Ray Bradbury, As crônicas Marcianas.

(Oi, amigo, tudo bem? Por ‘pioneiro’, entenda ‘um dos primeiros’, não ‘A OBRA ORIGINAL QUE DEU ORIGEM, A TODAS AS OUTRAS’, tá? Não estou afirmando que tenha sido o primeiro livro passado em Marte, pode fechar a aba do wikipedia, gradecida)

Há um monte de livros, para todos os gostos – e sim, a maior parte são de obras inéditas aqui no Brasil, como a celebrada trilogia marciana de Kim Stanley Robinson. Mas a chegada da sonda, acompanhada em tempo real por milhões via redes sociais me lembrou muito o primeiro capítulo do meu livro sobre Marte preferido: In the court of the crimson kings, de S. M. Stirling. Por incrível que pareça, é um livro de História Alternativa. E, obviamente, uma homenagem a uma das melhores músicas de todos os tempos: “In the court of the crimson king”, do King Crimson.

Gente, como eu amo essas modernidades de não ter que lembrar código HTML pra colocar as coisas direito no blog!

E por que lembrei do primeiro capítulo? Porque ele se passa em 1962, na 20a. Worldcon, a convenção mundial de Ficção Científica, onde um bando de autores está acompanhando a descida de uma sonda americana no planeta vermelho. Para nerds fãs da Velha Guarda da FC Anglofona, é uma delícia essa homenagem, em que pescamos referências a várias obras e muitos autores, como o próprio Heinlein. Ironicamente, o autor diz que estava escrevendo um livro sobre Marte, mas as sondagens feitas antes da chegada da sonda o fizeram desistir. Na nossa linha temporal, Heinlein escreveu justamente Um estranho numa terra estranha nesse periodo e levou o Hugo, prêmio de melhor livro de FC, no ano seguinte. Porém, na realidade que Stirling descreve, o livro ficaria mesmo sem sentido, já que, em vez dos seres diafanos e ultra zens que Heinlein imaginou, a sonda encontra marcianos muito mais parecidos com os de Burroughs.

Dali, a narrativa pula algumas décadas e já passamos a acompanhar os marcianos envolvidos com a disputa política terráquea, afinal os EUA e o BlocOriental (combinando poderes da China e da URSS) tem bases no planeta vermelho e muito interesse em aprender os segredos da civilização marciana. Apesar de estarem em declínio, os marcianos tem um conhecimento gigantesco de engenharia genética, contando com armas e equipamentos que são, na verdade, formas de vida feitas sob medida para suas funções. Acompanhamos um arqueologo norte-americano e uma mercenária marciana em busca de artefatos e resposta em uma das antigas cidades do planeta, remanescente de um império desaparecido. Quem leu o livro de Burroughs, vai gostar bastante do desenvolvimento dos personagens e da trama.

É bom dizer que este é o segundo livro da série Lords of Creation, iniciada com The Sky People, que reimagina Vênus com dinossauros. Stirling faz uma história alternativa com um escopo bem mais amplo do que o costumeiro, imaginando como seria o nosso sistema solar se uma raça antiga tivesse se intrometido no desenvolvimento da vida em seus planetas. Partindo da literatura pulp e dos conceitos que se tornaram praticamente lugar-comum ao se pensar nos dois planetas, ele conseguiu criar um universo coerente e ao mesmo tempo inacreditável. Sabe, dinossauros em Vênus?

https://twitter.com/barry/status/1362520729305112576

Além de ser uma bela história alternativa, em que Stirling pesou as consequências de uma descoberta tão bombástica no desenvolvimento da história terráquea, é um bom exemplo de romance planetário. Marte é um ambiente completamente alienígena, hostil e fascinante ao mesmo tempo, até mais do que Vênus no livro anterior. A prosa de Stirling ajuda bastante, sendo leve mesmo para fazer descrições tão diferentes das nossas sensações e experiências, evitando excesso de informações e fazendo a trama fluir com a leveza que se espera de um pulp, porém com a coerência e beleza de estilo que passamos a exigir de leituras ‘mais sérias’.

O livro pode ser lido sozinho, ficando ainda mais saboroso se lido na sequência de The Sky People e com algum conhecimento prévio dos clássicos da Ficção Científica pré-1960. Eu sempre fiquei curiosa por uma continuação em Jupiter ou Saturno, mas o Stirling deve ser ficado ocupado demais com a série da cidade que viaja no tempo e nunca mais voltou a mexer com isso. Uma pena, pois são dois livros recomendadíssimos por mim.

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